O que esperar da neve
 



Cronicas

O que esperar da neve

Paula Rocha


A lembrança da primeira vez que vi neve, no início de 2017, vem acompanhada de um chá quente de limão com gengibre. A fumaça espirala, o calor faz formigar perto da boca. Um toque leve, semelhante aos flocos que caíam naquele ano, pequenas gotas umedecendo cabelos, ombros, a ponta do nariz. Até hoje estranho o fato de não ter sentido tanto frio.

Ver, inclusive, é um termo generoso, já que desde criança me acostumei com a visão desse cenário em séries e filmes, geralmente norte-americanos. Associei neve com o pessoal lá de cima - o chamado Primeiro Mundo. Aos poucos, foi arraigando no meu inconsciente a ideia da neve como um insumo o qual apenas certos países podem custear. A mágica acontecia nas cenas de crianças construindo enormes bonecos nos subúrbios e no White Christmas com luzes coloridas iluminando as ruas gélidas.

"Imagina só ver neve, que mágico deve ser", já ouvi de tantas pessoas. Mas sentir… essa é uma história à parte. Ou melhor, a metade que faltava da narrativa.

Com dezesseis anos, fiz um intercâmbio para ter aulas de inglês em Malta durante um mês. Onde? Pois é, um país-ilha moldado numa aparência rochosa, construções em bege com o Mediterrâneo azul-cobalto ao fundo, próximo à Sicília. Inclusive, um dos passeios mais interessantes que a minha escola de idiomas propunha era um bate-volta ao Monte Etna.

Num sábado, acordei às 4h da manhã para encontrar o grupo que ia viajar comigo na sede da escola. O caminho era longo, duas horas de ferry até a costa da cidade de Pozzallo, mais duas horas de carro para chegar na estação de esqui. Ao nível do mar, o tempo estava nublado com eventuais garoas; lá em cima, céu límpido, vento que não passava de uma brisa agradável e sol que aquecia o rosto. Quando saí da van, veio a primeira "surpresa", digamos: andar no solo congelado, quebradiço, mas duro, muito propício a quedas. Nas áreas com neve mais funda, era preciso pegar "a manha" de fincar bem o pé antes do próximo passo. A chuva de flocos brancos durou uns cinco minutos, no máximo.

Fiz meu boneco. Nem de longe igual àqueles da TV, que chegam a ter a nossa altura com uma cenoura no lugar do nariz. Minha versão do Olaf tinha cerca de trinta centímetros e parecia ter sido pisoteado. Foi um coitadinho resistente, levando em conta minha experiência no gelo, de cerca de trinta minutos até aquele momento. Bem diferente da imagem mental que criei na infância.

Não durou muito tempo, ficamos cerca de duas horas antes de precisarmos descer o caminho de volta. O retorno foi mais penoso que a ida. Senti náuseas com o movimento do barco e, ao aportarmos em terra firme, estava tonta e com dores de cabeça. Quando cheguei no apartamento de minha host family já era noite, deitei na cama com a esperança de que passasse após alguns minutos. As mudanças variadas de temperatura em curto período cobraram seu preço. Resolvi checar por febre e não deu outra, quase quarenta graus no termômetro. Vômito e diarreia vieram depois, seguidos de três dias de cama. Ainda longe de casa, contatando a médica - vulgo minha mãe - pelo celular.

Pode-se dizer que não foi o que eu esperava. Os perrengues a gente não espera. Estamos conscientes de que podem acontecer, mas a (des)graça é o quando, a hora do acaso, um mistério além de nossas mãos. Em geral, preferem chegar de mansinho para testar a resiliência. "Apesar dos pesares, você se arrepende?", algumas pessoas perguntam. Respondo com um sorrisinho. Eu vi neve pela primeira vez e existe magia nisso.


Paula Rocha tem 23 anos e é estudante de Design Visual na UFRGS. É leitora voraz desde criança, mas só a partir dos dezesseis imaginou a possibilidade de escrever também, por incentivo de um professor. Em 2022, participou da Oficina de Criação de Contos do escritor gaúcho Alcy Cheuiche. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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